segunda-feira, 16 de abril de 2012

Vem Kafka Comigo

Veio meio que escondida entre a prateleira de bestsellers e a de livros espíritas e chamou a outra quase sussurrando.

- Mãe.

Sem resposta.

A outra continuou procurando algo na seção de autoajuda.

Insistiu:

- Mãããããããe.

- Ooooi – respondeu a mulher quase gritando. Sem nem virar o pescoço.

- Descobri um negócio – continuou a sussurrar a primeira.

- O quê?

Olhou para os lados, deu uns dois passos à frente e soltou:

- Kafka é o nome do autor, não o nome do livro.

Mesmo falando baixinho, não teve jeito. Umas três pessoas olharam pra ela querendo rir.

A mãe fez uma cara inenarrável de deboche, que só a arrogância senil é capaz de produzir. Na careta, ela disse: “você não tem noção da besteira que está falando sua idiota quando você está indo eu já estou voltando e agora tenho que ficar aqui ouvindo essas besteiras de uma analfabeta feito você”

Assim, tudo junto mesmo. Sem ponto ou vírgula. Numa careta só.

Embora a mãe tivesse lançado mão de um clássico no mundo das caretas, a filha não entendeu.

- O que foi?

- Você tá louca?

- Por quê?

- Nome do autor?

- É

- Eu vi muito bem. Não sou burra. Sei ler muito bem. Já li muito mais livros do que qualquer um aqui...

- Não to falando isso.

- Então, dá licença.

E saiu em busca de um atendente.

- Ô, mocinho.

- Pois não.

- Eu estou procurando um livro, você pode me ajudar?

- Claro. Qual o nome dele?

- É Kafka.

- Certo. Qual deles?

- Como assim, qual deles? Tem vários livros com o mesmo nome?

- Não, digo qual livro do Kafka a senhora quer? – E soltou uma risada um tanto nervosa, como que esperando confusão.

- Acho que você não entendeu direito: quero um livro chamado Kafka. Um romance!

- Perdão, minha senhora, mas Kafka é o nome de um escritor, e não do livro. Temos até um livro chamado Kafka, mas não é um romance. É um ensaio sobre a obra do escritor Kafka.

- Escritor? Ensaio? Impossível. Quero que você me chame o gerente agora.

- Mas, por quê?

- Por favor... O gerente...

Ele virou para dentro da loja e fez um sinal para chamarem o superior.

Enquanto o gerente não vinha, foi escutando um pouco da larga experiência da cliente.

- Você sabe quantos livros eu leio por mês, rapaz? Leio um por semana, garoto. Você sabe ler?

- Sei, sim senhora.

- Sabe nada. Já leu Violetas na Janela? Já leu Verônika Decide Morrer? Lê e depois vem falar comigo... Essa juventude de hoje precisa aprender a respeitar os nossos cabelos brancos. Bom mesmo era no meu tempo, que os jovens liam. Todos liam. Agora, alguém da minha idade não vai saber o que é o nome do autor e o nome do livro. Li lá na capa do livro: “Kafka”

Aparece o gerente.

- Ah, que bom que o senhor chegou. Queria fazer uma reclamação contra esse mocinho aqui.

- O que aconteceu?

- Ele me ofendeu.

- O que ele fez?

- Me chamou de ignorante.

- Só falei pra ela que Kafka era o nome de um escritor e não de um livro.

- Impossível, meu rapaz. Eu não sou idiota. Li muito bem na capa do livro: “Kafka”.

- Perdão, minha senhora. Ele está certo, Kafka é o nome do autor.

- Mas, será possível?!... Estão achando que sou idiota. Não tem ninguém mais experiente pra falar comigo, não?

O gerente logo sacou um livro e mostrou a ela a ficha técnica.

- Veja aqui esse livro, minha senhora. O título dele é O Processo. O nome do autor é Kafka. Franz Kafka.

- Kafka?

- Sim. Kafka.

Muita gente de olho na cena. Parou e procurou a filha. Nada. Há muito tempo estava na calçada, torcendo pra ninguém ter visto as duas juntas.

A mulher nem agradeceu. Deu às costas ao gerente, ao atendente, ao Processo, ao Kafka, e foi andando calmamente, sem mostrar nem um pingo de vergonha. Talvez, no fundo, no fundo, ainda achando que estava certa.

Cabeça erguida, olhar no horizonte. Deve ter aprendido em algum autoajuda. Ia murmurando alguma coisa.

Na porta, viu uma daquelas estantes giratórias com vários livros de bolso. Não é que lá estava um A Metamorfose, do mesmo Kafka?! Parecia que estava lá pra tirar sarro dela.

Reduziu o passo e olhou firme.

- Kafka... Kafka... Isso lá é nome de gente.

E num gesto rápido e certeiro se vingou.

Puxou o Kafka pela orelha e jogou-o no chão, mostrando todo o ódio que sentia por essa juventude burra e iletrada.

E saiu da loja pisando firme, quase marchando.

2 comentários:

Victor Farinelli disse...

Cara, achei genial!! É mais, achei que serve de metáfora prá como essa elite ignorante que lê a Veja achando que aquilo é conhecimento reage quando a irrealidade que eles aprendem na revista é desmentida pela verdade que eles enfrentam nas poucas vezes que saem de casa.

Parte do ódio crescente que se vê na sociedade brasileira hoje - que se origina sobretudo das classes endinheiradas do país - tem muito a ver com não saber lidar com o fato de ter visto desmoronar suas certezas de outrora, como a de que o modelo neoliberal era perfeito, a de que o Lula se chegasse ao poder iria quebrar o Brasil, a de que o pobre se tivesse dinheiro ia gastar em cachaça e não em melhorar sua condição de vida, a de que só os ricos sabiam ser eruditos culturalmente, etc.

E quanto a isso, a única resposta que essa gente tem é a da dondoca do conto, jogar um livro no chão e sair correndo, num mixto de raiva e impotência.

Gustavo Henrique disse...

O cronista de hoje deveria escrever ameno sobre as amenidades (assim fez Sabino, o "poeta" Rubem Braga, Ledo Ivo etc.), não endurecer tanto a palavra e esquecer a mania azeda de fazer crônica como quem sente necessidade incontida de transcender a palavra e obscurecer demais o texto, como se fosse criptografado, destinado a seleto grupo de pessoas deslumbradas com o mistério indissolúvel do texto do cronista moderno.

Não se pode esquecer que a crônica por si só é desimportante, não no que diz respeito ao que no leitor desperta, mas narrativa em si, no leveiro do cotidiano, na bobagem que é contada e que faz rir.

Seu texto é muito bom; você resgata o jeito simples e bonito de fazer crônica, contando como quem conversa. É isso que sinto falta nos crônicas de hoje.