domingo, 27 de novembro de 2011

O cara do Face

No shopping, puxei o livro da mochila e percebi que estava sendo observado. Mal virei a primeira página e ela se aproximou. Devia ter uns 20 anos. Ficou se contorcendo, tentando ler o nome que estava na capa. Conseguiu:

- Ai, que legal...

- O que?

- Ele tem livro?

- Como assim?

- O Caio tem livro...

- Que Caio?

- Esse que você tá lendo...

- Tem... vários... um dos maiores escritores do Brasil...

Ela não acreditou muito.

- Caramba... achei que ele era só o cara do Face.

- Cara do... ?

- Face... Facebook... internet... cê tem, né?!

- Tenho, tenho...

- Ele também.

- Quem?

- O Caio... tem um perfil todo fofo... Ele escreve cada coisa bonita.

- O Caio?

- Claro, pô. Não é dele que a gente está falando?!

- É que é impossível ele ter perfil.

- Por quê?

- Ele morreu...

- Impossível ele ter morrido!

Chegamos num impasse. Ela virou para o outro lado, como que digerindo a informação. Depois de um tempo, indignada:

- E quem atualiza o perfil dele, então?

- Ele é que não é.

- Cê ta brincando... não deve ser o mesmo... morreu de quê?

- AIDS.

- AIDS??? Então, ele era velhão?

- Velhão?

- É, ué! AIDS não é aquele negócio que dava nos anos 80?

Novamente, um impasse. Dessa vez, eu é que virei para o outro lado para digerir a informação.

- Lê um pedaço aí pra mim.

- Qualquer um?

- É.

- Lá vai: “Aquele negrão, sabe aquele negrão de cabelo rastafári que fica sempre ali no Quênia’s Bar? Aquele que vende fumo, diz que tem vinte e cinco centímetros, já pensou? Isso não é uma jeba, é uma jibóia. Até vinte agüento numa boa, até o cabo. Vinte e cinco não sei, tenho até medo. Pode rasgar a gente por dentro, sei lá”. *

- Ele escreveu isso?

- Sim.

- O Caio?

- Claro, pô. Não é dele que a gente está falando?!

Ela se levantou, indignada:

- Ele escreve coisas fofas, não isso aí. Ele fala de amor, esperança, sorriso. Coisas pra valorizar a gente. Ele tem frases que se encaixam em todos os momentos da vida da gente.

- Isso é Minutos de Sabedoria, não Caio Fernando Abreu.

- Minutos de quê?

Reparei que outra garota tinha se aproximado. Resolveu entrar na conversa:

- Que foi?

- O cara aí ta dizendo que conhece o Caio.

- Que Caio?

- O do Face!

- Ah, tá... prefiro a Clarissa...

- Que Clarissa?

- Ah, sei lá. Acho que é Espectro.

- Não é Clarissa, é Clarice, sua burra!

Começaram a tirar sarro uma da outra e se foram sem dar tchau.

Da próxima vez que estiver em público, puxo um Dostoiévski.

Duvido que ele também tenha perfil fofo no Face.

* O trecho foi extraído de uma frase da personagem Jacyr, do livro Onde Andará Dulce Veiga?, publicado em 1990